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Days Gone é propaganda biker infeliz

Este texto foi escrito por João Varella, colaborador de games na Folha, fundador da editora Lote 42 e autor do livro ”Videogame, a evolução da arte”, disponivel no site da Banca Tatuí


O assunto é Days Gone. Antes quero falar de Florianópolis. Estava lá em uma praça com amigos falando da vida no final do ano. A cidade estava calma, em ritmo manso, movimentos vagarosos, clima de fim de ciclo, expectativa para 2020. A paz foi rasgada pelo ruído de uma moto. 

Ou melhor, foi cortada, pois era uma moto chopper, que deve ter relação com o verbo em inglês to chop. Para quem entende pouco do assunto (como eu), era uma Harley-Davidson ou marca genérica. Isso não importa. Foca nessa reivindicação de atenção do motoqueiro, à custa da tranquilidade alheia. 

Essa atitude algo egóica, de pouca empatia, parece casar com a aura do veículo de duas rodas. Segundo a mídia especializada, “as motos estão ligadas a aspectos como liberdade, altas doses de testosterona e rebeldia”.

Fiquemos com a tal rebeldia. A gangue Hells Angels apavorou na costa oeste dos EUA. Enterrou o sonho hippie ao fazer a segurança de um show dos Rolling Stones e matar à faca um espectador exaltado (vide o documentário Gimme Shelter dos irmãos Maysles). Sem destino, o filme de 1969, emprestou energia transgressora para salvar Hollywood, como bem explica Peter Biskind no livro Easy Riders, Raging Bulls. A moto dos protagonistas era uma chopper com a bandeira dos EUA pintada no tanque — customizada, para usar um termo mais gamer.

De Sem Destino é revolta morro abaixo, com o marketing das fabricantes de moto convencendo consumidores a pagar caro por sua fantasia rebelde, seus maquinários. Culmina com a cena do filme do Sonic, quando o bicho azul entra em um ~bar barra pesada~. Os Judas Priest de cara amarrada funcionam bem como caricatura tola de filme infantil. 

Days Gone parece acreditar na ilusão.  O universo do game parte do pressuposto que num apocalipse zumbi os bikers ruidosos se salvariam. Ok, assinei o pacto de leitura, vamos em frente.

O protagonista é Deacon, um maleta cheio de respostinhas malcriadas. Durão de coração-mole, ele é casado com a cientista jovem, linda, loira e PhD para resolver qualquer desavença científica que o roteiro peça (achei que fosse a Lucy de Assassin’s Creed fazendo uma ponta). O companheiro de bromance de Deacon se chama Boozer e é, quem diria, um beberrão. Booze é bebida em inglês, uma sutileza digna de uma moto com escapamento aberto.

Para atingir a aura “radical”, o jogo se refugia na covarde violência inconsequente. É preciso matar crianças zumbis, eis o explícito choque de violência gráfica. A irreflexão seja obrigatória nas narrativas com zumbi, vide The Last of Us que coloca Ellie como contrapeso. Meio suspiro da personagem ao testemunhar Joel quebrando o pescoço de um zumbi vale mais que a consideração inteira de Days Gone sobre o assunto.

Se tem algo que se salva do arco narrativo é uma aura que lembra o musical Hair, com o personagem indo do hedonismo rebelde ao exército. O amadurecimento do protagonista é notório e até alivia um pouco o clima teen-bocó querendo ser levado à sério da primeira parte do jogo. Ponto a favor também para menções de NPCs entre si, aumentando a sensação de universo vivo (ou morto-vivo, rá!).  

O gameplay pouco inspirado e ainda cheio de bugs (terminei o jogo lançado em 2019 na semana passada), lembra o primeiro Uncharted no combate. Cru, pouco polido em qualquer aspecto que se veja, indisposto a ousar. 

O que segura Days Gone e o livra de uma tragédia completa é a progressão, uma skinner box bem desenhada com prêmios em experiência, itens e todo o pacote clássico do senso comum de jogos triplo A. Não falo isso do Olimpo, alheio aos desejos dos mers mortais. Empolguei-me com essa tradicional estratégia de reforço positivo. 

Days Gone emula alguns jogos contemporâneos de sucesso e ponto. Há quem coloque a moto e combates contra hordas de zumbis como inovações, mas é forçar a amizade. 

O cenário biker mal construído desperta o olhar para os defeitos do jogo. Uma narrativa mais bem amarrada certamente aumentaria a tolerância dos jogadores. 

Fui googlar sobre a cultura biker para tentar entender se alguma coisa estava me escapando, se tinha algum conserto para esse tanque furado. Fui ao site oficial da Fat Bob, o modelo mais barulhento da Harley Davidson:

Days Gone é propaganda? Tipo Global Gladiators para o McDonald’s? Mas nem assim serve. Diante de um apocalipse zumbi, melhor investir R$ 67 mil em qualquer outra coisa.


Agradeço o amigo Ricardo Escudeiro pelo empréstimo do jogo 🙂