Este texto foi escrito por João Varella, colaborador de games na Folha, fundador da editora Lote 42 e autor do livro ”Videogame, a evolução da arte”, disponivel no site da Banca Tatuí
Tempo é o tema central de Katana Zero. Esse jogo de ação com visão lateral e estética pixel-retrô coloca o jogador no comando de um samurai urbano capaz de colocar o mundo em câmera lenta. Mas não é só na narrativa e jogabilidade que o tempo tem presença marcante. A obra teve um entendimento importante para não cair em uma armadilha comum do tempo nos videogames.
[Katana Zero foi lançado em abril de 2019. Está disponível para Switch, Windows e Mac OS]
O assunto é Katana Zero mas antes quero falar do filme chileno Ema. Com as salas de cinema fechadas, o longa estreou na plataforma de streaming Mubi.
O aspecto visual neste filme é um dos pontos fortes. O diretor Pablo Larrain tomou partido de coreografias e fotografia original para relatar o drama de um casal que devolveu o filho adotado.
Mas há um problema: as propostas visuais se esgotam. A meia-hora final não entrega nada de novo, as imagens são reprisadas. Faltou fôlego ou uma administração dos melhores takes do filme para manter o interesse.
O audiovisual tem uma tradição estabelecida em relação à extensão. Um longa metragem como o Ema dura mais ou menos 90 minutos; episódio de série dramática, 60 minutos; série de comédia pensa em 30 minutos. Tudo isso com uma margem de erro ampla, claro.
Videogame não tem essa barreira. O problema é outro, o de não saber a hora de parar.
Ao invés de dar uma experiência concentrada do melhor que tem a oferecer, muitos games preferem estender as ideias além da conta, caindo em repetições e prejudicando a proposta do jogo.
Essa decisão é compreensível de um ponto de vista comercial. Há jogadores que compram um jogo com base na quantidade de horas de jogo. E depois que o grosso do desenvolvimento do jogo passa, com as principais decisões feitas e executadas, é mais barato de se fazer novas fases.
E dá-lhe encher linguiça, dá-lhe missão secundária bucha.
Katana ZERO é um exemplo potente de como é desejável evitar esse erro. Suas cinco horas de jogatina são de entrega intensa, sem barriga, sempre deixando uma ou outra surpresa ao longo de suas fases.
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Comecei Katana ZERO aos tropeços. Pensava que estava encarando um jogo estilo Ninja Gaiden, anos 1980. Fui induzido pela figura do samurai e a estética do jogo, baseada na época que New Order e Luiz Caldas estavam nas paradas de sucesso.
Katana Zero é um falso anos 1980. O entendimento equivocado Katana Zero promoveu uma primeira hora desagradável. Com atraso, entendi que se trata de um jogo do gênero masocore, mais relacionado com Celeste do que com Shinobi.
Celeste é admirável. O jogo independente da Matt Make Games conseguiu uma rara mistura de jogabilidade com narrativa, tocando em temas difíceis de saúde mental. A insistência de superar obstáculos e lidar com frustrações é o mote de Celeste, que soube amarrar uma sensação comum dos videogames com algumas das questões humanas mais espinhosas.
Embora não tenha a elegância de Celeste, Katana ZERO consegue inserir com naturalidade sua mecânica de manipulação cronológica na narrativa. O personagem controlado pelo jogador é um samurai que usa uma droga que permite desacelerar o tempo e ensaiar a melhor forma de eliminar salas cheias de bandidos armados. Até o desafio ser superado, são feitas hipóteses e testes. As falhas que o jogador comete acontece dentro da narrativa. Fica assim explicado porque o jogador é uma espécie de John Wick de espada.
![](https://steamcdn-a.akamaihd.net/steam/apps/460950/ss_78eb8c3ac6ce079bf4c5e66f7ab68511d8229b93.600x338.jpg?t=1577748083)
Logo fica estabelecido o padrão que o jogo se assenta. Começa com uma consulta ao psiquiatra, injeção de uma droga, a entrega de um dossiê que pede a eliminação de um alvo, matar muita gente, voltar para casa, dormir, ter pesadelos que serão discutidos na consulta ao psiquiatra. E o ciclo se reinicia.
Antes que surja qualquer sombra de tédio, mudanças acontecem para distorcer essa estrutura, com mudanças de personagem, combate com inimigos especiais, surpresas na relação com o psiquiatra. A aura de sonhos e subjetividade permite isso sem parecer nada forçado. Ou seja, são feitas quebras nesse processo que parecia fixo e poderia tranquilamente carregar o jogo todo.
A grata surpresa do jogo da Askiisoft, e aí é algo que Celeste não faz com a mesma potência, é sua mudança constante de climas e sensações. Passa da adrenalina das fases embaladas com trilha de EDM para um tom melancólico e onírico antes das missões, com direito a escolhas de diálogo no melhor estilo dos games da Telltale.
Antes da narrativa se desgastar ou a jogabilidade enjoar, Katana ZERO se encerra. Entrega assim uma experiência na medida certa, soube a hora de parar. E eu acho que daria um ótimo filme, ouviu Pablo Larrain?
Ah, o que falei de Katana Zero em grande parte se aplica a Hotline Miami, obra de onde KZ tirou muita inspiração. Fico com a impressão que em termos de narrativa, KZ foi além, com uma estrutura mais complexa e refinada. Porém, Hotline Miami tem mérito de pioneirismo inegável